«Documentos únicos na história<br> do movimento revolucionário»
Este é um exemplo das sementes da Liberdade que nos legaram os homens e as mulheres comunistas em meio século de crimes e peregrinação prisional durante o regime fascista português
A repressão da actividade do PCP tem constituído, ao longo de décadas, uma das preocupações da classe dominante e do seu poder político que, da deportação ao homicídio, da tortura inquisitorial à encenação de farsas em tribunais especiais, da propaganda anticomunista à manipulação informativa da comunicação social que sustenta, a tudo tem recorrido para tentar calar a vanguarda da classe operária e retardar o fim da exploração capitalista.
Bem cedo se iniciou a perseguição e prisão dos militantes comunistas, ainda na 1.ª República. E, aos movimentos grevistas do protesto operário, a democracia parlamentar republicana respondeu com a violência policial, o cárcere e o degredo.
Em 1926, com cinco anos de existência na «legalidade democrática» vivida, cônscio dos perigos que se avizinhavam, o PCP passou a defrontar-se com o triunfo da reacção fascista, o que exigia novas formas de luta, daí o ter mergulhado na clandestinidade em Fevereiro - Março de 1927.
Sucederam-se os decretos de constituição e sucessiva reorganização da polícia política, todos eles apostados em construir e burilar um aparelho repressivo eficiente, buscando um modelo e uma técnica de recolha de informação que fosse além da já rotineira bestialidade nos interrogatórios dos «agitadores sociais». Mas, dado o volume crescente dos detidos, e não havendo capacidade de acolhimento no sistema prisional comum, optou-se pela secular experiência da deportação para os Açores ou para os territórios coloniais.
Em 1933, a Ditadura fascista ultimava a máquina trituradora dos direitos e garantias para as décadas vindouras: em 11 de Abril, entrou em vigor a Constituição do regime; em Agosto, criou a PVDE - Polícia de Vigilância e Defesa do Estado; em Setembro, aprovou o Estatuto do Trabalho Nacional com a fascização dos sindicatos e, em Novembro, publicou o Decreto n.º 23203, dando corpo ao Tribunal Militar Especial, enquanto aprontava a deportação de presos «perniciosos», que embarcariam em Peniche, com destino à Fortaleza de São João Baptista, em Angra do Heroísmo.
Contudo, a estrutura repressiva do regime fascista não estava ainda concluída e, alguns anos depois, quando o navio «Luanda» fundeou no ancoradouro da Achada Grande do Tarrafal, descarregando os primeiros presos políticos deportados, inaugurava-se, a 29 de Outubro de 1936, o «paraíso prisional» inventado por Salazar, para destruir os seus adversários políticos, como Alfredo Caldeira, Bento Gonçalves e tantos outros.
As forças mais reaccionárias da sociedade portuguesa, haviam reinventado o tenebroso tráfego oceânico que animariam, até 1954, com embarcações carregadas de homens destinados à destruição física pelo trabalho forçado das «Brigadas Bravas», nas pedreiras de Cabo Verde.
Durante décadas, o regime fascista recuperou o sistema prisional medieval no cenário das masmorras de Angra, do Aljube, de Peniche, do Reduto Norte de Caxias e demais espaços prisionais concebidos como jazigos de vivos, onde ombreava o sadismo dos carcereiros com o dos torcionários da «investigação», na mais absoluta impunidade.
Em 48 anos de Ditadura, dezenas de milhar de homens e mulheres passaram pelas cadeias do regime, e se numa primeira fase, a polícia política desencadeou vagas de prisões em massa, posteriormente, passou à progressiva selecção dos quadros antifascistas a deter, apostando mais na destruição psicológica dos detidos do que na sua eliminação física na prisão. As dezenas de homicídios executados pela polícia política no cárcere, como o de Manuel Vieira Tomé e Germano Vidigal, deram lugar a assassinatos na via pública, e assim tombaram, entre outros, Alfredo Dinis e Dias Coelho.
Contudo, o calvário percorrido por milhares de indómitos combatentes da Liberdade, onde os militantes comunistas foram progressivamente constituindo a maioria, não pode ser entendido como um caminho feito de silêncios, numa reclusão passiva aqui e ali interrompida por audaciosas fugas ou tentativas mal sucedidas. Pelo contrário, são múltiplos os exemplos de firmeza perante o inimigo de classe, como o do embarque em Outubro de 1930, onde os presos políticos e a multidão concentrada na praia de Santos em Lisboa, entoaram a Internacional.
Nas condições duríssimas do regime prisional, o protesto individual ou colectivo foi uma constante, atestado pelos milhares de castigos registados nas fichas prisionais, e confirmado pelas grandes lutas levadas a cabo pelos presos em Peniche (1949-1950) e a greve de fome de 8 a 22 de Outubro, em Caxias (1954). Sucederam-se, os abaixo-assinados de protesto contra o regime prisional, a arbitrariedade dos guardas, a falta de higiene, a par de exposições de denúncia da situação dos presos políticos em Portugal à comunidade internacional, em Agosto de 1961, como consta na carta enviada à Conferência da Europa Ocidental para a amnistia aos presos e exilados portugueses, de 130 presos em Caxias.
Mas, nem o Calejão, a Poterna ou as Furnas do Monte Brasil em Angra do Heroísmo, nem as Casamatas de Peniche, a Frigideira do Tarrafal, os lôguebros subterrâneos do Reduto Norte de Caxias ou os Curros do Aljube (*), foram suficientes para calar ou abater o espírito de sacrifício, a abnegação e a coragem moral e física dos muitos comunistas que por ali passaram.
Atolados em excrementos nas masmorras de Angra, sufocados pela saúna pestilenta do Tarrafal, alucinados pela tortura do sono e da estátua ou massacrados por espancamentos - durante longos anos de dias sombrios e iguais - esses homens e mulheres integrados nas organizações prisionais comunistas, conseguiram erguer entre si, espaços de solidariedade e promoção cultural, alfabetizando operários e camponeses, onde os mais habilitados ministravam aulas de matemática, história, línguas estrangeiras, etc., procurando tirar partido do tempo de clausura para melhor apetrechar para a luta, aqueles que a sociedade economicamente excluíra do seu sistema educativo.
É nessa linha que se inserem os «documentos únicos na história do movimento revolucionário», qualificação dada num editorial do prestigiado periódico francês dirigido por Henri Barbuse, ao consagrar uma página aos jornais escritos nas prisões portuguesas (**), sob a manchete:
«Testemunho de grandeza revolucionária»
«Portugal...
País de arvoredo policromado, de vinhedos e de canções...
País de padres, e de camponeses esfomeados; de grandes lavradores e de desempregados...
País que há nove anos, a mão mortífera dum ditador fascista, estrangula...
Mas o cristianíssimo ódio de Salazar não consegue amordaçar este país que, um dia, será de novo um jardim da cultura humana.
Expulsa da luz do dia, zumbindo em segredo nos bairros proletários das cidades e nos casebres dos camponeses, elevando-se acusadora perante os juizes ignóbeis, gemendo sob a tortura dos carcereiros, a verdade do futuro vive em Portugal.
Imaginai vós estes presos políticos que, arriscando a sua liberdade, a sua saúde e a sua vida, levantaram o estandarte do combate e, estiolando-se durante anos inteiros, na noite esgotante das enxovias medievais, separados do mundo exterior por uma parede de chumbo, continuam a luta, solidários, com os seus irmãos em liberdade. Uma folha de papel, um lápis, uma pena – que dificuldades para obtê-los – mas eles encontram estes instrumentos de trabalho e escrevem.
E não são soluços de seres desfalecidos; não são gritos de desespero; os presos políticos de Portugal editam em plena prisão, escritos pelos seus próprios punhos, jornais de combate. «Jornais escritos por comunistas, para comunistas», se intitulam estes jornais que, ao preço de mil perigos, circulam de cela em cela, de prisão em prisão. A descoberta do autor dum destes jornais – e não é fácil negar-se o que é escrito pelo próprio punho – significa um prolongamento da pena por meses e anos.
A luta dos presos políticos revolucionários nos diferentes países reveste, é certo, formas múltiplas e é rica de exemplos de heroísmo. Contudo, estes jornais dos presos portugueses constituem documentos únicos na história do movimento revolucionário.»
Monde, 12 de Abril de 1935
(*) Instalações prisionais
CALEJÃO - antiga cavalariça desactivada, dadas as más condições para estabulação dos animais, na a Fortaleza de São João Baptista, em Angra do Heroísmo.
POTERNA - masmorra subterrânea em forma de poço, sem ventilação nem saneamento, cujo acesso se fazia descendo vinte e dois degraus, a Fortaleza de São João Baptista, em Angra do Heroísmo.
FURNAS - cavernas do Monte Brasil, sob a Fortaleza de São João Baptista, em Angra do Heroísmo.
CASAS-MATAS - abrigos da fortificação militar que ficam alguns metros abaixo do nível do mar, sem luz e altíssimos índices de humidade, onde presos políticos e ratazanas disputavam as parcas refeições, na Fortaleza de Peniche.
FRIGIDEIRA - construção em cimento exposta ao Sol, no campo de concentração do Tarrafal, com 7 x 3,5 m, dividida internamente em dois compartimentos de quatro passos, onde a entrada de luz e a ventilação se fazia por cinco pequenos orifícios na porta de ferro, e uma fresta junto ao tecto.
CURROS - celas de 2 x 2,5 m sem janelas, na Cadeia do Aljube, em Lisboa.
(**) Jornais prisionais manuscritos aqui reproduzidos:
Boletim Inter-Prisional - Órgão da célula comunista da Fortaleza de Peniche - 1935
O Trabalho - Dos comunistas em reclusão na Penitenciária (de Lisboa) - 1935
Potenkin - Órgão dos presos comunistas ex-marinheiros (Peniche) - 1935
Pavel – Órgão teórico dos jovens comunistas presos em Peniche - 1936
O Condenado Vermelho - Órgão das células comunistas de Monsanto - 1936
O Fogo - Revista teórica da célula comunista da Fortaleza de Peniche - 1936
Carril Vermelho - Órgão dos presos comunistas da CARRIS (Aljube) - 1936
Frente Vermelha - Boletim Prisional de Angra do Heroísmo - 2ª Série -1937